quinta-feira, 30 de julho de 2015

ANTENADOS



A quieta procura

Quando menor, conversando com um adulto, na doce gabolice infantil de tão inesperadamente receber atenção perdurada dos seres mais velhos, eu odiava aquele momento em que de repente o olhar do outro se perdia, se desprendia do meu rosto e começava a vagar pelo aposento até se fixar num ponto morto. E os olhos deles então se faziam vazios e vidrados, e eu sabia ali que tinha perdido meu adulto, passara a falar sozinha.
Lembrança forte que tenho é daquela tarde, hoje já amorfa e indefinível, impossível de se rastrear com exatidão no calendário, uma tarde em que eu, pequenina, conversava com tia minha sobre um bobo assunto sério meu, e ela prestava tanta atenção em mim que me embevecia, para então o encanto ser tirado: os olhos dela se moveram, se esvaziaram, resvalaram até o vidro das grandes portas de madeira que se abrem na sala da casa para o jardim, e se grudaram então na flor alaranjada de um hibisco que havia ali fora, para jamais voltarem a meu rosto por longo tempo.
Foi esse o momento em que finalmente pude dar nome ao que já vinha percebendo: os adultos não prestam atenção. E desde então eu vinha crescendo no esforço de ser sempre uma criança muito atenta. E quando os adultos começavam a encarar os vazios, eu os olhava com a agressividade passiva de quem queria entender com todas as forças o seguinte mistério: "O que será esta quieta procura? O que é que buscam?"
E a minha própria procura era tentar ver nas pupilas adultas qualquer ponto cristalino que me permitisse acessar suas cabeças e descobrir o que é lhes ensimesmava tanto.
Mas houve momento em que cresci e é provável que tenha me tornado também um adulto de buscas quietas. Não sei bem quando me rendi à mazela do alienar-se, mas é bem provável que de modo algum eu pudesse evitá-la.
A confirmação de meu estado veio agora nessas últimas férias que passei ao lado de minha irmã pequena. Por diversas vezes eu me flagrava sendo flagrada por ela naqueles alheamentos tão próprios dos adultos. Conversávamos nós duas e de repente era como se já não conseguisse acessar o sentido do que a pequenina me dizia, interessava apenas o pensamento que ia se tecendo no meu coração, súbito, ensurdecendo os meus ouvidos e de repente conduzindo meus olhos para qualquer ponto vazio do quarto.
Assustei-me quando notei que fazia assim o mesmo que fizeram desde o princípio dos tempos todos os adultos e que eu em criança condenara. Agora, sendo grande e olhando o mistério de dentro, entendo: não há explicação para ele, nada o legitima.
Mas eu tenho esperanças de que agora possa conciliar o mundo da infância com o mundo dos estranhos crescidos dando testemunho de que na verdade essa quieta procura não deve em nada magoar os meninotes porque, a sério, é muitas vezes nos pequenos que está a resposta ou o objetivo de toda busca empreendida por um adulto.
Como quando faço a minha irmã uma pergunta qualquer, propositadamente plantada a soar natural, do tipo: "Maninha, o que é um pensamento?", ou "O que é um sonho?", e nesse momento é a criança que não percebe que estou inteiramente submersa nela, ouvindo atenta a resposta e querendo-a, me admirando de tudo o que diz em seu malabarismo inventivo e pueril de me explicar o mundo através de seus olhos.
Que as crianças estejam em paz com os adultos. Os adultos também procuram quietamente por verdades arrasadoras em respostas sérias e comprometidas e sem suspeita dos olhinhos infantis.

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