domingo, 5 de fevereiro de 2017

ALÉTHEIA

O que é existir?
Há tantas implicações na definição do que seria existir. Ou seja, conceituar a existência é algo bem complicado. Aspectos culturais, históricos, psicológicos, dentre outros, se encarregam de tornar quase impossível o estabelecimento de qualquer conceito que seja, a princípio, universalmente aceito. Mesmo assim, a história do pensamento humano, em todas as épocas e culturas, se propôs exaustivamente à tarefa de esclarecer tal aspecto da realidade, especialmente para espécie humana. Ora, não há existência sem atos de uma consciência que a torne perceptível, essencialmente, como “alguém no mundo” e, também, “a percepção do mundano”, isto é, a possibilidade de ser encarada (a consciência) como um tipo de direcionamento intencional para aquilo que há fora dela. Assim, se constitui o “se ver a si próprio”, no mundo, como alguém singular e concreto, mas também com os outros, feito expressão de uma manifestação simples e explícita de certa finitude, sempre propensa à realização e diferenciação.
Religiões, “filosofias”, artes, e principalmente na Modernidade, a ciência, se empenharam (e ainda se empenham) em tornar viável uma explicação. Nesse sentido, qualquer determinação conceitual da existência precisa, para sua aceitação, entendimento e validação, da análise da realidade individual, subjetiva e concreta como efeito inescapável do que chamamos de vida. Contudo, não se pode fugir ao traço dual da existência: vida e morte como seus elementos correlatos. Bem, diante disso, qualquer existência se processa em dois campos distintos e complementares: o primeiro é a presença; e o segundo, a mais absoluta ausência. Não que existir seja somente isso. Entre um extremo e outro, muita coisa sempre acontece. E, é justamente esta multiplicidade de acontecimentos, quase sempre imprevisíveis, que vão dando forma, volume e verdade a história do ser e, portanto, irão caracterizar seu existir.  
Por outro lado, no contexto histórico-filosófico da Antiguidade, uma das expressões mais emblemáticas dessa busca pelas raízes do estudo da existência é, certamente, a frase imperativa, no templo de Apolo – consagrada pelo pensamento socrático à condição de verdade inconteste – isto é, o “conhece-te a ti mesmo”. Bem, em tese esse autoconhecimento estaria profunda e permanentemente ligado à apreensão sábia, sensata e equilibrada das próprias vivências, numa forma de conhecimento que permitiria um existir mais pleno, desprovido dos enganos de quem desconhece a si próprio e o mundo circundante.
De modo algum, por outro lado, seria a defesa ardorosa dos individualismos, centrados na ideia de um eu absoluto (solipsismo) e egoísta. O que está em jogo aqui é o “conhecimento de si” como pressuposto fundamental para a realização factual, singular e pessoal da vida em toda sua virtual plenitude. Temos, por conseguinte, a afirmação de que a existência feliz é alcançada somente através de sua aceitação, enquanto expressão de algo que se possa compreender e como reiteração de que o viver-existir vai muito além de “experiências irresponsáveis”. É preciso, por assim dizer, nesse universo de possibilidades, o sujeito possuir uma “consciência do próprio existir”. É o “saber viver”, dilema humano por excelência, a questão ansiosamente à procura de respostas aceitáveis buscando ressignificar, a cada instante único e diferenciado, a vida gratuitamente dada pelas diretrizes arbitrárias do mundo.
No século XVII é Descartes, com seu “penso, logo existo”, quem inaugura e difunde, até certo ponto, concepções tratando da vida humana em seu status existente. Nessa altura, o Racionalismo encontra nele uma das figuras de maior expressão, notoriedade e influência. Ele irá influenciar diversos outros filósofos, pensadores, artistas, inclusive a ciência moderna (o Método Cartesiano), como símbolo de reconfiguração do novo universo intelectivo, centrado numa racionalidade absoluta, justificando quase tudo. Suas ideias servirão de fundamento para campos tais como a psicologia, a psicanálise, a arte, a física, a matemática, a religião etc., no campo de ação daquilo que se imaginou possível para a razão.
Por isso, principalmente depois dele, a razão assume a condição intransferível de mecanismo dissecador do real, inclusive no que diz respeito ao homem e sua perturbadora existencialidade. À racionalidade, portanto, caberia o desafio de exprimir convincentemente uma forma de pensar a factualidade de um ser que se embrenha no árduo desafio de descortinar sua formação, constituição, origem, desenvolvimento, relações, como autêntico meio de elaborar uma eventual identidade universal, ou essência. Unindo pensamento e existência, o pensador francês se sente confortável para traçar pontos de vista sobre o homem de seu tempo, num tipo de dialética na qual o pensamento é a confirmação do ser, enquanto algo existente. 
É no Existencialismo sartriano, em sua “aspereza” conceitual, que se encontra uma das mais belas definições do existir, ao asseverar que “a essência não precede a existência”, num típico enfoque pessoal e intransferível. As vivências, em suas apreensões cotidianas, perfazem o caminho seguro para que cada pessoa seja aquilo que escolheu para si, onde escolhas e consequências determinam os fins, ainda que sejam desconhecidos pela consciência em sua intencionalidade. Então, ser é se dispor a aceitação dos sobressaltos das contingências, no ritmo frenético e austero de quem ouve atentamente os timbres da vida, especialmente em sua melodia prática e imprevisível, ou melhor, na temporalidade das coisas do mundo.  




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