Dialógica
do corpo
Poucas
coisas são tão sagradas, para maioria das pessoas, como o próprio corpo.
Através dele, em sua natureza física e material, elas se comunicam com o mundo
em derredor. Ou seja, pessoas, objetos, sensações, impressões, sentimentos, se
conectam à dimensão sensitiva do corpo.
As “coisas”, em sua exterioridade dialogal, se dão na relação
comunicativa direita com os aspectos físico, anatômico, fisiológico, do gênero
humano, na captação presencial de quem percebe a realidade circundante como
conjunto de impressões (ou contatos) destinados à apreensão corporal pelos
sentidos. Essa abertura para o que existe, e portanto para a exterioridade, nos
seus variados mecanismos de manifestação, faz conhecer a realidade material em
sua capacidade, legítima, de intercomunicação autêntica: o real só pode ser
notado se houver, de alguma maneira, quem se dê conta dele.
Aqui
está a razão, por conseguinte, para o filósofo francês Merleau-Ponty, no livro Fenomenologia da Percepção, afirmar o
seguinte: “Só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e
na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo”. Nesse
complexo de possibilidades, surgidas da obrigatoriedade de manifestação física
do sujeito vivo, em sua interioridade vibrante e permanente, se encontra a
própria natureza interacional do existir como “consciência de mundo”. O
fundamento para esta interação é, basicamente, resultado da espacialidade e
temporalidade do corpo, ligando e religando o homem em sua estrutura factual
subjetiva, numa teia interminável de objetividades identificáveis: cada objeto
é e não é, simultaneamente, quem o visa. Assim, entre tantas experiências, vão
aparecendo as formas pelas quais as qualidades apreendidas instauram o
movimento contínuo das sensações, quando sentir pelos órgãos sensoriais é
entender, conhecer e descrever, apenas e tão somente pela corporeidade.
Logo,
ao falar de uma dialógica do corpo, a intenção é ver nela a materialidade da
existência viva, disposta a absorver, de maneira concreta e pulsante, as
essências disponíveis daquilo que agrada ou desagrada, e não apenas isso,
receber, por meio da própria carne, os sabores, os sons, os odores, as luzes, e
as dores e prazeres, da vida físico-químico-corpórea. Então, os limites prescritivos,
especialmente os de ordem comportamental, precisam ser deixados de lado, por
apresentarem a contaminação intolerável da reprovação pelo “não poder”; além de
manifestarem concepções repletas de falsas descrições do desejável, num
tolhimento do querer natural, voluntário e espontâneo.
Com
isso, o desejo em seu caráter pessoal e intransferível, é, na origem, aquilo
que se faz na autonomia da livre escolha, em prol de toda e qualquer satisfação
arbitrária. Contudo, ela se torna alcançável somente na extensão e
externalização da vontade, e sua manifestação, sobretudo através do corpo
desejoso, quando as recriminações são abandonas “a própria sorte”. Desse modo,
o sentimento prazeroso, como não poderia deixar de ser, acaba desempenhando
papel basilar: inexiste sensação de prazer sem corpo sensível que o reconheça. Dessa
forma, em virtude do enclausuramento deliberativo do espírito humano, - o
gostar é inventado na luz cegante da ignorância de si - talvez haja necessidade
de uma reeducação para o deleite, isto é, um conjunto de instruções e
orientações cujo objetivo primeiro seja provocar positivamente as sensações,
despertando o potencial de cada indivíduo para a liberdade de uma pura e
genuína “consciência do sentir”.
Quando
o indivíduo se encontra desprovido de consciência autônoma e livre, escapar, às
experimentações da cotidianidade induzida, parece uma questão inconcebível ao
eu que ele criou para si: ele é a imagem perfeitamente copiada do comum, do
repetido e banalizado, portanto, sem originalidade e desprendimento pessoal. Em
contrapartida, se tornou prisioneiro das ideias elaboradas justamente para
isso: as expectativas, mesmo as mais otimistas, repercutem as aspirações de
alguém acomodado às vulgarizações dos prazeres – qualquer objeto se tornaria fonte
de contentamento – estando preso num corpo que não é mais seu, pois foi pilhado
pela negação dos instintos de sua formação biológica.
O
corpo, por conseguinte, vai se emoldurando, reprimido e contido pelo receio de
não ser aceito no seu “universo interior (ou exterior)”, com sua assimilada
indiferença às excitações da vida coletiva, inventadas como resposta às
violências físicas, simbólicas, interpretativas, levando ao descredenciamento
de sua identidade avulsa. É esse isolamento compulsório, sustentado na
incredulidade daquilo que faz, sente, pensa, e principalmente no que se revela
aos sentidos, a causa verdadeira de sua inafetividade. Segundo Merleau-Ponty,
“O mundo objetivo cada vez toca menos diretamente no teclado dos estados
afetivos ‘elementares’, mas o valor continua a ser uma possibilidade permanente
de prazer e de dor”. Enfim, a ausência de diálogos, entre estímulos e
estimulado, acaba comprometendo representações que poderiam levar ao ato de
transcendência do eu individual e único – ele mesmo – em favor da conexão
dialética com o todo. Porque o encarnado – o
sujeito no seu corpo – se recusa a aceitar, por convenções ideológicas e
comportamentais, as incumbências da naturalidade de ser absurdamente
constituição somática.
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