A lógica do Estado deve prevalecer sobre a
justiça?
* Sérgio Mauro
Recentemente,
dois juristas, Cláudio Fonteles e Marcelo Neves, solicitaram o pedido de
impeachment de Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Sem
sombra de dúvida, apesar de certos polêmicos episódios anteriores, o que
impeliu tais juristas a uma atitude tão drástica tem a ver com a atuação de
Gilmar Mendes no julgamento da cassação da chapa Dilma/Temer.
Talvez
com a melhor das intenções, no referido julgamento, o ministro Gilmar Mendes
colocou acima de tudo a lógica da manutenção da ordem e do Estado constituído
acima da lei. O seu voto de minerva, previsível, não quis se ater ao óbvio,
diante de provas incontestáveis, tudo em nome da valorização da paz provisória,
interpretando pessoalmente a legislação eleitoral que deveria ter sido aplicada
no caso específico.
O caso
mostra mais uma vez a elasticidade das leis que podem ser interpretadas de
acordo com uma visão muitas vezes pré-concebida, atendendo a pressões de vários
lados, frequentemente justificável em nome da ordem estabelecida.
Gilmar
Mendes comportou-se como o médico que, após solicitar exames do seu paciente,
busca consolá-lo em face aos índices possivelmente muito acima ou abaixo dos
padrões estabelecidos, asserindo que se trata sempre de uma perspectiva de
interpretação que pode ser múltipla, sujeita a comparações matemáticas entre
índices e curvas de complicados gráficos, variáveis de acordo com cada pessoa
ou ao menos de acordo com cada grupo formado por idades ou fatores de risco
semelhantes. Em poucas palavras, pouco ou nada há de preciso em tais resultados
de análises laboratoriais.
Pois
bem, o “analista” e juiz Gilmar Mendes fez prevalecer a sua leitura dos fatos,
muito mais baseada no ditado popular “é inútil chorar sobre leite derramado” do
que no outro, igualmente na boca do povo, “antes tarde do que nunca”. O leite
já foi derramado, mas ainda é possível fazer a limpeza com um bom pano úmido e
um pouco de detergente, para não deixar marcas de gordura.
Realmente,
a impugnação da candidatura Dilma/Temer deveria ter ocorrido antes mesmo que
eles fossem eleitos, mas, considerando-se a tradicional lentidão na apuração
dos fatos e, sobretudo, na emissão da sentença final, perdeu-se uma
oportunidade única e histórica de consertar erros do recente passado político
cujos malefícios repercutem no atual momento, no bolso dos consumidores, na
falta de oportunidades de emprego e, enfim, na crise moral-política-econômica
que insiste em permanecer no país.
Também
não concordo com a tese defendida pelo ilustre juiz de que, apesar da evidência
de financiamentos ilícitos, é preciso relevar o perigo de, num espaço de pouco
mais de um ano, destituir dois chefes de Estado. É muito perigoso abrir
precedentes em casos do gênero, pois pode dar a impressão que não existe
verdadeira independência entre os três poderes. Se há provas claras do
financiamento ilícito, não há nada, nem mesmo o agravamento da crise política
que poderia decorrer da cassação do mandato de Temer, que possa justificar a
absolvição do vice-presidente em exercício, ao menos no caso em questão.
Só há
verdadeira democracia quando as decisões tomadas, em todas as instâncias e por
todos os poderes, são fundamentadas na legalidade, nunca cedendo a pressões de
políticos ou lobistas, tampouco a possíveis apelos à governabilidade ou a
previsões catastrofistas de caos social. Vamos ao encontro do caos quando
esquecemos, ainda que momentaneamente, a indissociabilidade entre o respeito
pelo voto popular e o respeito pela aplicação das leis. Quem elegeu não sabia
que estava escolhendo uma candidatura financiada com dinheiro da corrupção. No
entanto, uma vez que, após a apuração dos fatos, constatou-se a ilegitimidade
de todo o processo que levou Dilma e Temer ao poder, não há motivos para
continuar insistindo numa lógica de defesa do Estado que não se coaduna com a
rígida aplicação das leis!
*Sérgio
Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.
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