sexta-feira, 8 de setembro de 2017

ARTIGO DO GATO



Meu avô
Barbara Costa Ribeiro

O momento é tenebroso, eu sei. Mas hoje é também o aniversário do meu avô, Azevedo Costa, homem que me ensinou a nunca desesperar. Esse texto, então, é sobre ele, sobre essa e outras coisas que nos ensinou, e sobre a nossa família, e também sobre meu tio Alexandre Azevedo Costa, o caçula (e vocês logo vão entender por quê).
Aí em Macapá, é já de conhecimento geral a trajetória política do Azevedo Costa. Eu mesma cresci ouvindo a história de como, no ano de 1985, o vovô foi eleito o primeiro prefeito pelo voto popular, já que a capital até então não havia tido eleição direta para o cargo. À época, ele venceu com a maioria esmagadora de 52% dos votos, naquela eleição em que outros quatro candidatos também concorriam ao cargo: Júlio Pereira (PDT), Braga (PT), Jarbas Gato (PFL) e Geovani Borges (PMN). A sensação de provar com colherzinha de chá a ideia de uma democracia era já esfuziante, e a abundância de partidos só nessa eleição já demonstrava isso. Tudo era muito novo. O próprio MDB tinha acabado de se transformar em PMDB, coisa que aconteceu lá pelo ano de 1979.
Meu avô venceu sob a insígnia do PMDB. Na verdade, foi um dos fundadores do MDB no Amapá, a convite de Binga Uchôa, após terminar o colégio e a formação técnica. Vovô foi eleito vereador duas vezes e, depois, com a tal abertura política, veio a campanha e a eleição ganha para prefeito. Até hoje se comenta aquele mote, que ficou impresso a fogo na mente e nos corações de muitos: "Macapá vai brilhar". E a nossa cor era o amarelo.
Eu cresci ouvindo essa história. Cheia de paixão, de vitória, de luta, de alegria. Era emocionante pensar que um menino preto nascido à beira do Rio Matapi lá na localidade do Porto do Céu, e que cresceu colhendo, amassando açaí, e depois factótum da prefeitura da capital, tapando buraco e plantando árvore no sol de meio-dia, chegou a fundar o braço de um partido, e se tornou prefeito, simplesmente porque gostava do espírito de agremiação, gostava de bagunçar o coreto, botar tudo pra frente, fazer mudança, e era um homem com esse talento bonito de ajuntar amigos ao redor de si, coisa que se mantém até hoje.
Mas, anos mais tarde, a história de alegria desse homem era também, na nossa intimidade doméstica, uma história de tristeza. Porque da mesma forma como sabíamos de coração toda a narrativa da eleição popular e do chegar à prefeitura, a gente conhecia também o relato doído e conturbado da derrocada. Envolveu o mal gerenciamento de uma capital ainda gigantesca, antes de ser desmembrada em outros municípios, envolveu a precariedade de infraestrutura, quando mal era possível pensar em governar uma capital se nem bem existia capital, e as pessoas tinham pouco de seu, lhes faltava teto, chão. Envolveu ingenuidade na gestão, envolveu falta de astúcia. Tantas, tantas coisas. E tinha também a questão da oposição de um outro grupo político, uma família, um outro nome, que durante o começo da trajetória era aliada, mas que por uma série de discordâncias e desarranjos, logo se converteu em fonte de tensão, má-fé e dissensão, assumindo as raias mesmo da perseguição pessoal. Uma coisa toda assim bem Montecchios e Capuletos, mas sem o romance adolescente e o duplo suicídio.
Eu cresci então com essa narrativa, entendendo negativamente a política em termos de aliados e algozes, tudo tão apaixonado e visceral... O nome de meu avô foi em muito apagado, rasurado da história de um povo e de um Estado. Tornou-se quase um eco fraco, e nos primeiros anos após a saída da prefeitura, foi sinônimo de gestão frágil e empreitada amputada, escorraçado, ao fim do mandato, num levante sobretudo puxado pelo grupo opositor.
Mas foi eu crescer um pouco para perceber que as coisas iam por outros caminhos, não era tudo assim, tão binário, e "nós, os bons", ou "eles, os maus". A própria história de surgimento do PMDB, que eu sempre ouvira com muita admiração, trazia em seu bojo muito mais uma questão de fazer as vezes de abertura política, com o pessoal lá da ditadura militar mexendo os pauzinhos a fim de criar uma sensação de oposição real naquele bipartidarismo.
E fui entendendo também que as depreensões da política dão tão errado porque além de estar ela tão essencialmente atrelada ao discurso, às versões dos fatos, à retórica, a gente também coaduna seu sentido à paixão. É por levar tudo tão a ferro e fogo, é por transformar qualquer decisão política numa questão necessariamente de amor ou ódio, que o brasileiro quase nunca consegue decidir as coisas guiado por um pensamento uno, espírito de coletividade, de bem geral, de racionalidade, seja o que for. E aqui se inserem outros dilemas variados da minha adolescência e juventude fortemente erguidos na desesperança e no desgosto políticos.
Eu rapidamente passei de uma pessoa emocionada com a trajetória pessoal e social do meu avô, e tudo o que aquilo iluminava nos meus sonhos, a alguém de opiniões apáticas e que simplesmente preferia não se envolver.
Mas não me envolver era também uma forma de desprezo que diz respeito às paixões, estas perigosamente ameaçadoras a qualquer ordem social ou nobreza política. E fui entendendo aquele dito, um que meu avô me disse certa vez: "Bárbara, o jogo é jogado como o lambari é pescado".
Mas do topo de meu dissabor político, experimentei coisas novas nestes últimos tempos, bem no seio da família. Cheguei em Macapá, nestas últimas férias de julho, sabendo que meu tio Alexandre Azevedo Costa ia se candidatar a vereador. Meu pé ficou atrás: sobretudo porque a política ali em Macapá já foi motivo de muita tristeza, decepção e ruína. E, afinal, portar este sobrenome, Azevedo Costa, não é uma coisa fácil. Existe uma história maior que nós. E eu pensando lá comigo mesma: "Por que o titio quereria enfrentar uma campanha estafante, um cargo público do legislativo que demanda tanto esforço e sobre que repousa uma responsabilidade absurda, como acontece com qualquer carreira política?". Já fomos muito feridos por toda a conjuntura macapaense, e mesmo fomos desacreditados. E, num nível mais pessoal, me doía ver que este era o meu tio que estava sempre ali, que quando a gente era criança passava horas jogando a gente na piscina e brincando, o tio que gostava tanto de passarinho, e de galinhas também, e só pelo prazer de criá-las mesmo é que cuidava delas. Era o meu tio que tinha tempo para fazer dessas coisas, e tinha tempo pra gente, pra todos. Um homem que entendia de bicho, de planta, de natureza e outras canduras, então mais um homem bom a ser ferido por essas corridas eleitorais malucas, portando o peso de um nome que até então tanto afogara a todos nós?
Mas foi chegar ali pra ver que a situação era bem diferente do quadro que eu tinha pintado na cabeça. Foi chegar para ver que não era só a questão do resgate de um nome. Era também um desejo de mudança ardendo dentro de um homem reto. O mesmo desejo que movera meu avô anos atrás, mas agora com a vantagem de termos aprendido com anos de história e de percalços, para não repetir as coisas todas ou emular o que ficou para trás. O que meu avô ensinou a todos nós foi coragem e doçura. Em meu tio vejo o que o vovô legou à gente, com o adendo de cobrar de si até demais. Mas posso conviver com a ideia de um homem que não aceita nada menos do que uma postura impecável de si próprio, sendo ainda assim bondoso com tudo o que se move. E segue com essa certeza de mudança, com propostas como o abrigo para quem mora na rua e não tem onde dormir, projeto que mais me fisgou, indispensável e urgente numa cidade onde estamos tão confinados dentro do conforto dos nossos carros, que a gente nem percebe como tem gente vivendo nas ruas de Macapá, largados, como seres invisíveis.
Gosto de pensar numa política que constrói moradas. Meu avô, em sua gestão de tanta incipiência, o que fez foi construir bairros, dar casa a muita gente, erguer conjuntos habitacionais, teto e espaço a quem não tinha nada. E mesmo hoje Macapá é ainda esta cidade em que as pessoas estão vivendo nas áreas de ponte, e a cultura da palafita, histórica e tão característica dos povos ribeirinhos que somos, hoje, na verdade, nos centros urbanos deste nosso norte, encobre a realidade feita de casas de madeiras paupérrimas construídas sobre esgotos a céu aberto. É preciso mesmo projetos que construam moradas, que façam da cidade, de fato, um lugar em que se pode habitar.
Morada é onde o coração encontra paz. E nesse sentido já não sei em que níveis a política se afasta ou se aproxima do que é da ordem da paixão. Mas acredito numa ética do afeto. Do preocupar-se com o outro.
Meu vô nos legou um nome, e um nome é um nome. Se pesado ou leve, importa que os nomes sejam lembrados. Se pelas coisas boas que fizeram, melhor ainda. Acho que a política é também uma questão de preservar histórias. Esta é um pedaço da nossa. Para afinal não ser esquecida e quem sabe até voltar a figurar entre os nomes dos que lutam pela construção de um mínimo de dignidade humana.
Vejo em meu tio detalhes de bondade, este meu querido tio, que um dia, quando eu era pequena, os adultos todos e ele também na correria para tentar resolver o apagão numa madrugada em que a luz tinha ido embora, parou tudo para me explicar, só porque eu perguntara, como é que podia ser noite pra gente e dia no Japão e por que é que quando a luz elétrica era cortada de noite a gente não enxergava mais nada. E ele então se deteve naqueles minutos, com uma lâmpada na mão, no escuro, na varanda, me explicando noções básicas sobre a orbitação da Terra e o funcionamento do Sol. Talvez ele nem lembre, mas a menina de seus cinco anos não esqueceu.
Vejo neste tio que cuida de galinhas, só pelo prazer de cuidar, e que dá atenção às crianças e se preocupa com a gente em cada detalhe a mesma bondade que há em meu avô, apesar de todas as rasteiras da vida.
Sei que é difícil abrigar um conceito definitivo do que seja "bom", mas "bom" não é aquele que, até onde sei, se preocupa com o outro, primordialmente? Não há forma mais feliz, para mim, de fazer as pazes com a politica e com um nome, com meu próprio nome, do que entender finalmente que politica pode ser não unicamente o que diz respeito aos discursos, aos lados e às ideologias, mas é também, enquanto tenta aliar tudo a um padrão de bem geral e coletividade, a demanda de preservação de narrativas, histórias e nomes, e de modo geral quer abrir espaço a todo nome, mesmo os que foram esquecidos.

É isto. E abaixo, a foto de um homem doce e sua esposa, homem que nos ensinou de tudo o que é bom, e hoje comemora seus 78 anos, de esperança renovada e cabeça erguida. Porque temos história. Porque somos de luta. Parabéns, vô. Alegria para toda a nossa família, para uma cidade que vai te redescobrindo. Beijos da tua biscoitinha

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